Desde as duas candidaturas de José Serra (2002 e 2010) à presidência da República, a paternidade da legislação dos medicamentos genéricos tem sido tema de discussão no Brasil, com o político paulista advogando para si esta iniciativa, enquanto seus adversários classificam este discurso como sendo fraudulento, pois o real mérito seria do ex-ministro da saúde Jamil Haddad.
ex-Ministro da Saúde José Serra |
Como ainda não conseguimos aplicar um teste de DNA sobre idéias e leis, vamos nos debruçar sobre alguns artigos produzidos pela área acadêmica brasileira, pesquisando as ações que deram origem à legislação atual, seus respectivos encaminhamentos e resultados.
Quando a década de 90 se inicia, o Brasil não incluía os medicamentos em sua política de patentes industriais, ou seja, não havia exclusividade para o laboratório criador dos chamados medicamentos inovadores. Assim que um laboratório lançasse um novo produto, os demais poderiam produzir e vender medicamentos similares desde que se submetessem à vigilância sanitária. A disputa pelo mercado de medicamentos era uma competição de laboratórios que buscavam obter para o produto de sua marca a liderança de vendas, sendo que o mais interessado pela escolha do produto, o paciente, não tinha informação suficiente para tomar sua decisão. Esta dependia exclusivamente do médico responsável por emitir a receita, o que era sempre feito pelo nome de marca do medicamento e não de seu princípio ativo. O produto líder era o que conseguia maior adesão da comunidade médica, independente do preço ofertado ao paciente.
Deputado Eduardo Jorge |
ex-Ministro Jamil Haddad |
Isso permitiria que os pacientes pudessem escolher dentre os diversos produtos com mesmo princípio ativo ou “denominação genérica” do medicamento receitado pelo médico. Entretanto, o projeto não teve tramitação rápida pelo Congresso Nacional e, pelo DECRETO 793 DE 05/04/1993, o então Ministro da Saúde Jamil Haddad e o presidente Itamar Franco determinaram, de forma bastante semelhante ao PL 2022/1991, que:
- todo estabelecimento de dispensação de medicamentos deveria dispor, em local visivel e de fácil acesso, a lista de medicamentos correspondentes às denominações genéricas e os seus correspondentes de nome e/ou marca;
- o tamanho das letras do nome e/ou marca não poderia exceder a um terço (1/3) do tamanho das letras da denominação genérica;
- seria obrigatória a utilização das denominações genéricas (Denominação Comum Brasileira) em todas as prescrições de profissionais autorizados, nos dos serviços públicos, conveniados e contratados, no âmbito do Sistema Único de Saúde.
Apesar do decreto, a maioria de suas disposições não foram seguidas, devido a uma série de motivos, conforme nos relata Jorge Bermudez (BERMUDEZ, J. Generic Drugs: An Alternative for the Brazilian Market. Cad. Saúde Públ.,Rio de Janeiro, 10 (3): 368-378, Jul/Sep, 1994):"Uma série de entraves vem dificultando a efetiva implementação do decreto, cabendo destaque às numerosas ações na Justiça, as pressões exercidas por representações diplomáticas, as fragilidades do atual sistema nacional de vigilância sanitária e a não-concretização de ações a cargo da esfera federal, como é o caso da divulgação ampla da correlação entre as denominações genéricas e os nomes de marca."
O PSB e o ministro Jamil Haddad (e posteriormente Itamar Franco) saem do governo sem alterar a realidade da indústria farmacêutica no Brasil, permanecendo o mesmo cenário anterior à publicação do decreto 793.
A próxima medida legal do estado brasileiro com respeito aos medicamentos ditos genéricos foi a criação da Lei nº 9.787, de 10 de Fevereiro de 1999. Voltaremos a esta lei mais tarde porque o cenário referente à indústria farmacêutica como um todo havia sido consideravelmente alterado por dois fatores:
- No Brasil, a Lei N. 9.279 de 14 de Maio De 1996, referente a propriedade industrial;
- No mundo, a evolução e disseminação do conceito de medicamentos genéricos.
A Lei 9.729 criava uma legislação de patentes bastante similar à dos países desenvolvidos que pressionaram os países periféricos a adotar leis semelhantes como condicionante à sua entrada na OMC. O Brasil foi um pouco mais além e abriu mão de dois pontos não exigidos pela OMC, adotando esta legislação 10 anos antes do que, por exemplo, a Índia, além de permitir a patente retroativa de medicamentos. Em compensação, reservava-se o direito de quebrar a patente em alguns casos:
"Art. 71 - Nos casos de emergência nacional ou interesse público, declarados em ato do Poder Executivo Federal, desde que o titular da patente ou seu licenciado não atenda a essa necessidade, poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória, temporária e não exclusiva, para a exploração da patente, sem prejuízo dos direitos do respectivo titular."
Esta lei muda o cenário porque não mais permite a cópia pura e simples e torna ilegal a comercialização de medicamentos com mesmo princípio ativo enquanto durasse a patente (20 anos) do medicamento inovador. Esta legislação foi aplicada somente a novos produtos e os medicamentos cópias já em comercialização no Brasil continuaram disponíveis no mercado, passando a compor a classe mais tarde chamada de “similares”.
Esta lei muda o cenário porque não mais permite a cópia pura e simples e torna ilegal a comercialização de medicamentos com mesmo princípio ativo enquanto durasse a patente (20 anos) do medicamento inovador. Esta legislação foi aplicada somente a novos produtos e os medicamentos cópias já em comercialização no Brasil continuaram disponíveis no mercado, passando a compor a classe mais tarde chamada de “similares”.
Paralelamente, organismos internacionais ligados à saúde evoluíram o conceito de medicamentos genéricos, sugerindo sua substituição pelo conceito de intercambiável e propondo regras para seu registro e homologação pelas respectivas vigilâncias sanitárias.
Segundo Andrejus Korolkovas, professor titular da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, citado no mesmo artigo acima mencionado, os principais tipos de relação entre medicamentos seriam:
Inovadores x Genéricos x Similares |
Medicamento Genérico — as mais recentes recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) tentam evitar o uso do termo “medicamentos genéricos”, optando por usar “produto farmacêutico intercambiável”.De qualquer maneira, entende-se como conceito de medicamento genérico um produto farmacêutico, que pretende ser intercambiável com o produto inovador (ou de referência),geralmente produzido sem licença da companhia inovadora e comercializado após a expiração da proteção patentária ou outros direitos de exclusividade. Os medicamentos genéricos podem ser comercializados sob a denominação genérica ou utilizar uma nova marca, podendo também apresentar dosagens ou potências diferentes dos produtos inovadores.
Bioequivalência — dois medicamentos são bioequivalentes se eles são farmaceuticamente equivalentes e suas biodisponibilidades, após administração na mesma dose molar, são similares a tal grau que seus efeitos, com respeito à eficácia e segurança, sejam essencialmente os mesmos.
Intercambialidade |
Equivalência Farmacêutica — diferentes produtos são equivalentes farmacêuticos se contêm a mesma quantidade da mesma substância(s) ativa(s), na mesma dosagem, de acordo com os mesmos padrões e para ser administrados pela mesma via. A equivalência farmacêutica não necessariamente implica em bioequivalência, posto que diferenças nos excipientes ou no processo da produção podem levar a diferenças no desempenho do produto, no que tange à dissolução e/ou biodisponibilidade.
Portanto, medicamentos similares são medicamentos que guardam Equivalência Farmacêutica (mesma composição química) ao medicamento inovador ou de referência, enquanto os genéricos são os que, além disto, também apresentam Bioequivalência (mesma composição química e mesmo efeitos terapêuticos) com o medicamento inovador.
Estes conceitos foram desenvolvidos internacionalmente juntamente com alternativas para uma política de medicamentos conforme nos narra Jorge Bermudez, em artigo já mencionado:
“Um dos marcos mais recentes e importantes nesse sentido foi a Conferência Latino-americana sobre aspectos econômicos e financeiros dos medicamentos essenciais, realizada em Caracas,Venezuela, em março de 1992, durante a qual foi reiterada a política de medicamentos essenciais como um componente básico da política de saúde, ao mesmo tempo atribuindo uma maior importância aos mecanismos de mercado. O ponto central da estratégia de uma política de medicamento sessenciais no atual contexto é a adoção de programas de medicamentos genéricos, entendendo assim a comercialização de produtos rotulados exclusivamente de acordo com a DCI e com características de intercambialidade com os produtos de marca (OMS,1992). A análise procedida durante a referida Conferência é de que a adoção de programas de medicamentos genéricos nos países da América Latina viria otimizar o mercado, ao romper coma exclusividade das marcas comerciais, oferecendo alternativas à população, reduzindo os preços e racionalizando os gastos dos sistemas públicos de compra e abastecimento.”
Neste contexto renovado pela lei de patentes e pelo conceito de intercambialidade, tanto o projeto de Eduardo Jorge e o decreto de Jamil Haddad mostravam-se inadequados, uma vez que não se poderia mais copiar fórmulas de medicamentos antes que a patente caducasse e, após isso, também seria necessário diferenciar os produtos similares (somente com Equivalência Farmacêutica) dos genéricos ou intercambiáveis (também com bioequivalencia). O decreto de Jamil Haddad, mesmo sendo posterior à Conferência mencionada por Jorge Bermudez, não tratou os novos conceitos e ateve-se ao destaque do princípio ativo.
Embalagem de Medicamento Genérico |
Serra em Campanha |
Em “Medicamentos e saúde pública em tempos de AIDS: metamorfoses de uma política dependente”, Maria Andréa Loyola nos conta:
“A experiência já havia demonstrado que a aprovação da lei de genéricos não era garantia de sua aplicação. E parte da batalha travada para a efetiva implementação dos genéricos, no Brasil, se deu na mídia. Segundo pesquisa realizada nos principais periódicos do país, entre 1990 e 2002, a política de genéricos foi objeto de 71 reportagens, entre janeiro e fevereiro de 1999, quando a lei foi aprovada e sancionada pelo presidente. Serra, na condição de candidato virtual à presidência, tinha acesso fácil à imprensa, o que atraía também seus contendedores.”
Baseado no descrito acima, o ministro Jamil Haddad e o presidente Itamar Franco não podem ser considerados os introdutores dos genéricos na pauta política brasileira, iniciativa que coube ao deputado Eduardo Jorge, nem seus efetivos implementadores, papel que coube a José Serra.
Baseado no descrito acima, o ministro Jamil Haddad e o presidente Itamar Franco não podem ser considerados os introdutores dos genéricos na pauta política brasileira, iniciativa que coube ao deputado Eduardo Jorge, nem seus efetivos implementadores, papel que coube a José Serra.
Esta conclusão, entretanto, é insignificante por concentrar a atenção da opinião publica em uma questão tão somente de reconhecimento púbico e desviá-la de alguns pontos. O primeiro é o fato não são mencionados ss profissionais que efetivamente elaboraram estas políticas e contribuíram com idéias e experiências para este processo. Claro que os políticos são importantes, mas nada teriam obtido sem o trabalho de muitos outros profissionais militantes desta causa.
O segundo, e talvez mais importante, é a redução aos genéricos da batalha por medicamentos mais baratos e, consequentemente, mais acessíveis à população que deles necessitada. Não se coloca em pauta a discussão se trata-se de uma questão majoritariamente de saúde ou industrial. Esse esquecimento nos impediu de trazer ao debate público se, 15 anos depois, a extensão da propriedade industrial aos medicamentos atendeu aos interesses nacionais ou foi uma concessão indevida ao establishment internacional.
Finalmente, nos leva a entender que os medicamentos genéricos já são uma realidade consolidada, o que não é verdade, basta verificar a notícia veiculada no portal do Estado de Sâo Paulo: Quase metade dos médicos dúvida da eficácia dos genéricos, ou ler o que nos dizem Cristiane Quental, Jussanã Cristina de Abreu, José Vitor Bomtempo e Carlos Augusto Grabois Gadelha em “Medicamentos genéricos no Brasil: impactos das políticas públicas sobre a indústria nacional”:
“Em síntese, a política de genéricos se mostrou acertada, permitiu ganhos estáticos de aumento da oferta e redução de preços, mas ainda deve avançar no sentido de sua contribuição para a superação das duas lacunas centrais do complexo industrial da saúde: a base empresarial local de inovação e o comprometimento com as condições de saúde da população brasileira.”
“Em síntese, a política de genéricos se mostrou acertada, permitiu ganhos estáticos de aumento da oferta e redução de preços, mas ainda deve avançar no sentido de sua contribuição para a superação das duas lacunas centrais do complexo industrial da saúde: a base empresarial local de inovação e o comprometimento com as condições de saúde da população brasileira.”
Que se abra o debate!
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