segunda-feira, outubro 31

Os Argentinos Sob o Tapete

Ana Maria Magalhães de Carvalho*

Queremos gritarle al pueblo blanco que estamos vivos, que no somos animales, que somos alguién aqui en la tierra. Tenemos una religión, tenemos valores y una cultura de años. Gritar para que el mundo entero sepa que lo único que queremos es que nos dejen seguir siendo Mbya Guaraníes. (Rodolfo Chamorro, líder espiritual da etnia Mbya Guaraní)

Cultura dos povos originais
do território argentino
Argentina, uma nação sem índios?  Sob o estereótipo de “o país mais europeu da América Latina” e tendo sua capital comparada a Paris ou Madrid, a Argentina não é conhecida, pelo menos aos olhos de uma pessoa comum, por apresentar povos indígenas. Talvez eles tivessem existido em um passado longínquo, quando a Argentina ainda não era Argentina, mas apenas uma terra a ser conquistada pelos espanhóis. Ou talvez haja alguns indígenas bolivianos, peruanos e paraguaios que, em busca de melhores condições de vida, foram expandindo suas comunidades de imigrantes nas chamadas villas ou em bairros de Buenos Aires, como Liniers.


Povos originais do
território argentino
Será que é assim mesmo? Basta uma viagem para as pitorescas províncias andinas de Salta e Jujuy,  na região noroeste argentina - experiência vivida pela autora deste texto -  para colocar por terra certos estereótipos e levantar questionamentos sobre a história argentina e quem são os argentinos. O mais intrigante é que muitos argentinos desconhecem que o país apresenta uma população indígena heterogênea, com mais de 30 etnias distintas, que corresponde a aproximadamente 2% ou 3% da sua população total, mais de três vezes a proporção de indígenas existentes no Brasil, segundo pesquisa realizada em 2004 pelo governo argentino. Talvez aquele “boliviano” ou cabecita negra(terminologia racista, calcada na configuração nacional branca e européia, atribuída aos migrantes rurais que chegavam em Buenos Aires a partir da década de 1920, com a intensificação do processo de industrialização) dentro do metrô bonaerense também seja um argentino. Um indígena, mas igualmente membro dessa comunidade imaginada chamada Argentina.

O que teria acontecido, ao longo da história da Argentina, para que ela fosse caracterizada como uma nação sem índios, mesmo para os próprios argentinos? E quais teriam sido as consequências desse processo para os povos indígenas ali existentes? Essas perguntas constituem o cerne do problema que este texto visa analisar.


Distribuição geográfica dos povos
originais do território argentino
Quando os primeiros colonizadores espanhóis chegaram no que hoje é a Argentina, toda a atual porção do seu território era habitada por aproximadamente quinhentos mil a um milhão de indígenas, pertencentes a mais de 20 etnias distintas. Como a expansão da sociedade colonial se deu a partir do Alto Peru visando estabelecer um canal de ligação com Buenos Aires e a Metrópole, as populações da região norte foram as primeiras a serem dominadas. Esse processo conduziu à ocupação de suas terras, à morte de muitos indígenas, à tentativa de um processo de deculturação que contava com o apoio de missionários da igreja católica, como os jesuítas, à exploração da mão-de-obra indígena, principalmente em atividades agrícolas e mineiras, e à miscigenação entre os espanhóis e as mulheres indígenas, o que deu origem a um novo estrado social, os mestiços. Muitos indígenas também fugiram para lugares mais ermos do território e como a colonização se concentrou especialmente na porção norte, amplas regiões dos pampas e da patagônia foram menos afetadas durante este período. A partir deste contato entre os povos indígenas e a sociedade colonial vão sendo estabelecidas relações de conflito e de fricção interétnica, para usar uma expressão do antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (1981), que seriam caracterizadas por interesses opostos e por assimetrias de forças que conduzem a uma relação de dominação e sujeição. Os povos indígenas também passaram por um processo de transfiguração étnica, igualmente analisado por Darcy Ribeiro (1982) em relação aos indígenas brasileiros, que também teve lugar durante a expansão da sociedade nacional, e que foi fundamental para a própria sobrevivência das diversas etnias.

O processo de expansão da sociedade nacional argentina ocorreu ao longo do século XIX e pode ser dividido em dois períodos. O primeiro vai da Revolução de Maio, que tem início em 1810, até a unificação do estado nacional, em 1861, e é marcado pela disputa entre duas facções: as províncias Confederadas, de orientação federalista, e Buenos Aires, que defendia maior centralização do poder. Os indígenas participaram do processo estabelecendo relações interétnicas intertribais e com as duas facções. Essas relações e alianças que eram estabelecidas foram importantes para a autonomia e sobrevivência dos povos indígenas durante este período de guerra civil. Para as duas facções que se confrontavam essas alianças com os indígenas eram importantes para conformar seu contingente militar e contribuir para a segurança das fronteiras. Com a vitória de Buenos Aires em 1861 e a unificação do estado nacional a situação se altera em detrimento dos indígenas que se tornam um obstáculo a ser superado para a continuidade da expansão da sociedade nacional.

Julio Roca
Juan Manuel Rosas
Já no segundo período, com o estado nacional unificado, a partir de 1870 são retomadas as campanhas do deserto que visavam expandir e consolidar as fronteiras do estado nacional. Essas campanhas já tinham se iniciado na década de 30 com Juan Manuel de Rosas, que governou Buenos Aires entre 1829 e 1852. A mais ofensiva dessas campanhas, chamada de A Conquista do Deserto, foi liderada pelo general Julio Roca entre 1878 e 1885, e tinha o objetivo de ocupar e povoar esses territórios, propositalmente chamados de deserto (região chaqueña e patagônia), por meio da conquista dos povos indígenas considerados bárbaros e selvagens. Essas incursões militares também visavam estabelecer e delimitar as fronteiras internas e externas da Argentina.  É importante destacar como a própria noção de deserto reflete uma política de invisibilização que vai sendo estabelecida em relação aos povos indígenas e que busca conformar o imaginário coletivo. Basta uma simples pergunta para desmistificar esta noção de que o interior da Argentina era um grande deserto: se era um deserto e, portanto, vazio, porquê haveria que vencê-lo? O deserto era assim chamado, apesar da presença humana, pois não se tratava de uma “humanidade reconhecível”, não sendo branca nem mestiça. Ademais, povoar significava exterminar e despovoar a terra desses “seres irreconhecíveis”, para substituí-los por brancos.

Podemos assim sumarizar as principais consequências desse processo para os povos indígenas, sejam elas: um saldo de mais de 12.000 mortos, comunidades dispersadas e desintegradas, o estabelecimento de reduções fronteiriças e assentamentos indígenas em terras inférteis e a exploração da mão-de-obra do indígena que deveria ser deculturado de seu patrimônio original para ser integrado, em estratos inferiores, à sociedade nacional e ao seu modelo econômico capitalista baseado na atividade agroexportadora e na concentração de terras.

Outra consequência fundamental foi a maneira como a identidade nacional argentina vai sendo construída a partir da exclusão dos povos indígenas.  Dentre os principais atores nesse processo estão os intelectuais, a igreja e as escolas. Foi sendo conformado um discurso que deu origem a um imaginário coletivo em que o indígena é percebido, primeiramente, como esse outro selvagem a ser conquistado e em um segundo momento, posterior à conquista do deserto, como esse outro que também é argentino, porém inferior e que deveria ser assimilado, em estratos inferiores, à sociedade nacional. O positivismo argentino, em especial a chamada Geração de 80 - biologicista, evolucionista e racialista - também foi fundamental nesse processo, pois legitimou e forneceu as bases científicas que justificavam a exclusão desses grupos da formação da identidade nacional. Também houve uma política de fomento à imigração européia que contribuiria para a purificação da sociedade, para a inculcação de valores e modos de vida europeus e para esse projeto de homogeneização cultural que consubstanciou a formação da identidade nacional argentina.

Durante praticamente todo o século XX foram realizadas apenas algumas poucas e débeis inciativas por parte do governo em relação aos indígenas, como a criação de departamentos que visavam dar conta do chamado problema indígena, mas que não foram capazes de estabelecer uma política indigenista consistente e de longo prazo.

Somente com o retorno democrático, em 1983, essa política de relativa invisibilização começa a ser alterada de maneira mais significativa e assiste-se à criação de legislações voltadas para o reconhecimento dos povos indígenas. Dentre os principais instrumentos legislativos estão as leis provinciais específicas para seus povos indígenas, a lei nacional de política indígena e apoio às comunidades aborígenes, de 1985, a reforma da constituição nacional em 1994 - que seria o marco dessas ações e reconhece a pré-existência dos povos indígenas ao estado nacional - a propriedade comunitária da terra e direitos específicos aos indígenas, a ratificação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que versa sobre populações indígenas e tribais e a lei emergencial sobre a posse e propriedade da terra de 2006 e sua prorrogação até 2013, que proíbe o desalojamento de comunidades indígenas durante este período e prevê o mapeamento das terras ocupadas por essas comunidades.

A partir da criação desse aparato legislativo também são criados os principais programas e politicas públicas voltados para os povos indígenas, como a criação do Instituto Nacional de Assuntos Indígenas, responsável pela aplicação da política indigenista do estado, criação do Registro Nacional de Comunidades Indígenas (RENACI), o reconhecimento de pessoa jurídica às comunidades registradas para que obtenham a propriedade comunitária da terra, o Programa Nacional de Educação Intercultural e Bilíngue e o Programa Saúde com os Povos Aborígenes.

Etnias originais do território argentino
Mas quem são e quantos são os povos indígenas na Argentina hoje? Ainda que relativamente precário e sem contar com a participação dos povos indígenas na sua elaboração e divulgação, o censo de 2001 e uma pesquisa complementar a esse censo, feita entre 2004 e 2005, incluíram perguntas para conhecer quem e quantos eram os povos indígenas na Argentina. Segundo essa pesquisa:

·        Haveria em torno de 600.329 pessoas que se reconhecem como indígenas, o que corresponde a algo entre 2% e 3% da população total argentina;
·        Foram identificadas 30 etnias com mais de 500 habitantes e mais de 16 etnias com menos de 500 habitantes, localizadas principalmente no norte da Argentina;
·        Mais da metade da população que se reconhece como indígena pertence aos seguintes grupos étnicos: Mapuche, Kolla, Toba, Wichí, Diaguita ou Diaguita Calchaquí.
·        Verificou-se um aumento da emigração do campo para os centros urbanos, apesar de a maioria dos povos indígenas ainda viverem em regiões rurais.

Em outubro de 2010 foi realizado um novo censo na Argentina, do qual ainda se espera o resultado. Pela primeira vez, a organização do censo nacional contou com a participação de indígenas que também trabalharam junto ao INDEC. Segundo o governo argentino, cada organização indígena apresentou representantes como censistas, configurando um total de 1.500 censistas indígenas. A participação dos próprios indígenas no censo contribuiu para que fossem entrevistadas comunidades que, anteriormente, nem se sabia da localização ou até mesmo da existência. Esses censistas também trabalharam na divulgação do censo, produzindo folhetos e informes publicitários que visavam estimular a população indígena, em especial a das grandes cidades, como Buenos Aires, Rosário e Córdoba, a confirmar seu pertencimento a um povo indígena quando fossem questionados pelo censo. Espera-se, com este censo, obter informações demográficas mais precisas sobre quem são e quantos são os povos indígenas existentes hoje na Argentina. Esses dados serão de suma importância para o seu reconhecimento e estabelecimento de estratégias voltadas para a melhoria de sua situação socioeconômica e cultural.

A situação atual dos povos indígenas na Argentina aparece como um reflexo desse processo de invisibilização e exclusão e de uma certa discrepância que existe entre o discurso e a prática. Muitos povos indígenas vivem em uma situação de pobreza apresentando elevados índices de analfabetismo, deserção escolar, desnutrição e doenças agudas.  Eles continuam sendo alvo de preconceito e discriminação que se reflete nas relações estabelecidas com a sociedade nacional, em especial no âmbito escolar onde muitos docentes não são bem preparados para atuarem nos programas de educação intercultural e bilíngue e ainda estigmatizam as crianças indígenas. Também existe uma constante expansão das fronteiras agrícolas, exploração mineira, gasífera e petroleira, além do crescimento do turismo, que desaloja as comunidades indígenas de suas terras, faz uso de sua mão-de-obra e contamina e destrói o meio ambiente e seus recursos naturais, afetando as práticas tradicionais dessas comunidades e a própria sobrevivência delas.

A criação das principais organizações indígenas e de um movimento etnopolítico na Argentina só ocorreu a partir de 1970. O marco deste processo foi a criação da Organização das nações e povos indígenas na Argentina (ONPIA) com o objetivo de lutar pelo reconhecimento, melhoria das condições de vida e garantia dos direitos dos povos indígenas na Argentina. Essa organização também tem como objetivo lutar pela maior participação dos indígenas na gestão dos seus interesses. Em 2010, no marco das celebrações do bicentenário da Revolução de Maio, os povos indígenas organizaram uma marcha, que saiu de diversos pontos da Argentina,  mas em especial do extremo noroeste, na província de Jujuy, e seguiu até Buenos Aires para cobrar visibilidade, reconhecimento e o atendimento de suas demandas. Dentre as principais reivindicações da marcha, e que condensa as reivindicações dos povos indígenas na Argentina, estão a reparação territorial e cultural, a educação intercultural e bilíngue, a criação de um fundo voltado para o desenvolvimento das comunidades indígenas a partir de suas próprias prerrogativas e a criação de um Estado Plurinacional na Argentina, a exemplo da Bolívia.

Em suma,  os povos indígenas na Argentina passaram por um processo de invisibilização ao longo da formação do estado e da identidade nacional argentina. A partir de uma política de dizimação e dominação dos indígenas, e de um projeto de homogeneização cultural, foi sendo conformado um imaginário coletivo que percebe a Argentina como sendo uma nação sem índios. Esse processo também contou com o fomento da imigração européia e com a  inculcação de valores e de um modo de vida europeus. Essa situação só começa a se alterar com a redemocratização da Argentina, em 1983, quando ocorre uma mudança dessa política que passa então a reconhecer os povos indígenas na Argentina, suas identidades e seus direitos específicos. No entanto, o que se verifica é que há uma tensão entre o discurso e a prática, que se reflete na falta de efetividade dos programas e políticas públicas direcionados aos povos indígenas, na precária condição de vida desses povos e no preconceito e exclusão que eles ainda sofrem. Para a reversão dessa situação é de grande importância o papel e a luta das organizações indígenas na Argentina, o estabelecimento de um verdadeiro diálogo interétnico em que os povos indígenas sejam interlocutores ativos, e não meros clientes de políticas assistencialistas, e que esses povos originários tenham seus interesses e demandas levados em consideração para a promoção do etnodesenvolvimento (um desenvolvimento que não se choca com os interesses e direitos desses povos). Como destaca Roberto Cardoso de Oliveira (2000), o campo indigenista deve assumir o diálogo interétnico e intercultural como decisivo para a promoção da cidadania indígena.


*Ana Maria Magalhães de Carvalho é Analista Internacional da Diretoria de Relações Internacionais da UFMG, com bacharelados em Ciências Sociais e Relações Internacionais e especialização em Gestão Cultural







Sobre Argentina leia também
Cristina, Peronismo e Esquerda



Nenhum comentário:

Postar um comentário